quarta-feira, 22 de novembro de 2017

INCONGRUÊNCIAS DA HOMINIZAÇÃO

     




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       Dizia-nos, há dias, uma pessoa das nossas relações, que a humanidade está no fim da linha; em fim de ciclo... Resta saber se outro ciclo se seguirá, dizemos nós – não tanto por tudo quanto o bicho-homem faz a si próprio, mas principalmente pelas agressões diabólicas perpretadas contra a nossa morada-única-planetária. Foi esta a resposta apresentada, e acrescentámos que a humanidade foi sempre autofágica e persecutória, mas com o decorrer dos séculos tem vindo a apurar, com subtileza e sofisticação – aliados a um crescente sadismo e fúria destruidora, as mais modernas ferramentas capazes de fabricar (progresso oblige) os mais letais e aniquiladores equipamentos bélicos, de resto, em consonância com a génese antropológica da tirania e do ávido desejo de poder.

        Independentemente de tudo quanto se passa, isto é, para lá de todos os factos ocorridos, cujo crescendo se deve ao já apontado progresso, o conhecimento dos mesmos, nos nossos dias, que não no passado, com carácter omnipresente e em tempo real, por força das novas Tecnologias de Informação e Comunicação, provoca nos indivíduos uma sensação de inexorabilidade, de carga insuportável, de dinâmica imparável, de agitação permanente, ou seja, de angústia existencial que a pequenez, insegurança e finitude humanas facilmente ratificam e consolidam.

      Quem teve, afinal, ao tempo, ou tem mesmo hoje, noção da forma bárbara, cruel, demoníaca, cínica, sádica como eram tratadas, usadas e abusadas as crianças (omitiremos, por agora, os adultos) nos séculos XVIII e XIX, pelos próprios pais, patrões ou instituições de acolhimento (?!). À data, as mulheres eram apenas propriedade dos maridos, máquinas de fornicação ou poedeiras de serviço, sem nenhuns direitos sobre os filhos. Os progenitores usavam e abusavam dos direitos que a própria lei lhes outorgava e chegavam a ter comportamentos animalescos em relação às crianças. Em Inglaterra, país industrialmente desenvolvido na época, só em 1908 é que o Supremo Tribunal de Justiça promulga a primeira Children Act, visando corrigir certos excessos paternos.

          Nos dois séculos anteriores, as crianças eram obrigadas a trabalhar nas fábricas horas a fio, mal dormidas e mal comidas, acabando a maioria por morrer devido a doenças ou por invalidez irreversível. No ano de 1802, uma lei reduziu para 12 (doze) horas o trabalho das crianças nas fábricas de têxteis, e impôs que os patrões respondessem pelo alojamento, comida, ensino da leitura e da escrita aos seus minúsculos escravos... Sir Robert Peel, parlamentar e industrial de Lancashire, foi o autor da novidade, convencido de que assim aumentaria a produção. Mais tarde, em 1819, Robert Owen pressionou Peel a constituir uma comissão de inquérito que avaliasse as condições do trabalho infantil nas fábricas de algodão. O resultado foi a publicação de uma lei que só permitiria o trabalho para maiores de 9 (nove) anos, ficando os menores de dezasseis anos obrigados a trabalhar treze horas e meia por dia (?!).

           Tudo isto não passava de uma grande fantochada: o estado não tinha ascendência sobre os patrões, os pais suspiravam pelos salários, por mais miseráveis que fossem, e os fiscais não actuavam; também não havia certidões de nascimento – obrigatórias apenas depois de 1837. Quatro anos antes, em 1833, o Governo procura proteger mais as crianças e, o deputado Lord Sadler, substituído depois por Lord Ashley (Shaftesbury), encolheu para dez horas diárias o trabalho para menores de 18 (dezoito) anos, não obstante a musculada resistência dos patrões. A Lei Comercial de 1844 estabeleceu já diferenças de vulto – o trabalho teria de alternar com a frequência escolar. Em 1918, a lei impôs a diferenciação entre o trabalho e a escola. A criança passaria a ser encarada, gradualmente, como sendo gente, mas...

      (...) em 1933, a Children and Youg Persons Act proibe a crueldade para com as crianças, contudo permite os castigos corporais... Uma no cravo, outra na ferradura! Na Alemanha, entretanto, Hitler destilava veneno. Já agora, recorde-se que na era industrial não existiam normas nem cuidados ecológicos, nem saneamento, nem água canalizada nem esgotos, nem a Declaração Universal dos Direitos do Homem, nem muitas outras coisas pretensamente reequilibradoras... as pessoas morriam aos milhares... a comunicação era escassa, lenta e distorcida... Penso que, ao longo da História, sempre estivemos no fim da linha; em fim de ciclo, ainda que nunca o soubéssemos...



A PSICODINÂMICA DO "CITIZEN KANE"





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          A RTP Memória, um dos poucos canais televisivos com alguns conteúdos de qualidade, passou na tarde soalheira deste seco Outono nacional (13/11/2017), a obra-prima cinematográfica de Orson Welles, “Citizen Kane” -- título mal traduzido em Portugal para “O Mundo a Seus Pés”. Refira-se, desde já, que o filme em apreço tem sido visto, por maioria de razão de quem sobre o mesmo se tem debruçado, apreciado (analisado) e tecido considerações, como o exemplo acabado, paradigmático, de um bem orquestrado exercício ritualizado de práticas jornalísticas onde se confrontam o poder e o contra-poder, e onde se confundem a objectividade e a subjectividade, o que coalha a credibilidade dos factos a noticiar.

    Charles Foster Kane – “Citizen Kane”, o protagonista, preocupa-se com os deserdados da sorte, logo é profundamente humano com as maiorias desfavorecidas (decorre a depressão económica dos anos 30 – séc. XX), mas desafia de forma caprichosa, discricionária e irreverente os jornais seus concorrentes, dirigindo a seu bel-prazer as publicações pelas quais responde. Mas, quem detém, afinal, a verdade?! Quem é capaz de ler a realidade sem confundir o ser e a aparência? A leitura objectiva de qualquer facto está sempre carregada de uma certa subjectividade associada à lente sócio-cultural e económica e ao contexto ideológico... por muito que se tente ser objectivo.

       Curiosamente, foi nesta época da história do jornalismo, segundo Jay Rosen (1956 - ....), que se lavraram acordos e cláusulas para que aos jornalistas fosse garantida liberdade de acção e independência, na óptica da objectividade factual. No entanto, quem financia os media não está interessado em perder dinheiro e, rapidamente, a tónica da objectividade é colocada na transformação das notícias em “instrumentos de marketing de qualquer espécie” ( Traquina & Mesquita, 2003: p. 76).

    Voltando ainda ao filme “Citizen Kane”, importa agora chamar a atenção para o enigma que perpassa toda a acção, e que se nos afigura como uma fixação regressiva primária que amarra o protagonista e o condiciona (psicodinâmica inconsciente) do princípio ao fim. Este mistério é regularmente evocado por Kane, através do referente-significante-signo-sinal - “Rosebud”. Mas é esta mesma psicodinâmica inconsciente que consegue gerar matéria para uma narrativa multidimensional e polissémica, onde se congregam referências várias – magnetismo, “glamour”, poder, arbítrio, manipulação, prepotência, e identificação projectiva – através da fantasia omnipotente operada pela voz (autoritarismo de Kane, que a mais recente mulher-mãe [Susan Alexander] tolera cada vez menos): ela tinha de ser, à força, a sublimatória cantora de ópera. Como amante, ele era um desastrado, embora fosse socialmente civilizado e cívico; como jornalista era representativo e ditador; como pessoa, era incapaz de crescer e de se transformar emocionalmente.

      Por último, torna-se fulcral sublinhar as cenas iniciais do filme (e a última), pois constituem, quanto a nós, a chave de toda a história e a explicação do enigma. Charles Foster Kane é filho de uma família pobre e desestruturada: a mãe (fria, calculista e seca) é quem manda em casa; o pai (frouxo, diminuído e patético) é um pobre diabo, e o filho, encarcerado nesta triangulação relacional edipiana nefasta, refugia-se na neve (pureza) exterior e evade-se em lúdicas aventuras com o seu querido trenó. A família, inopinadamente, sendo objecto de uma tão imensa quanto inesperada fortuna, obriga o menino a abandonar o trenó e a viajar da Inglaterra para a América, com um tutor que lhe administrará a riqueza até à maioridade. Na última cena do filme, depois de Kane ter sido abandonado pela única mulher que julgou ter amado (reminiscência da mãe), acaba por morrer (pela segunda e definitiva vez), sendo queimados os seus pertences... e o trenó, onde se pode ler, pela primeira e última vez, a palavra “ROSEBUD”...

   Eugene O`Neall (1888 – 1953) escreveu: “Não existe presente nem futuro; só o passado se repete nas nossas vidas, de forma insuportável, vezes sem conta”.