quarta-feira, 31 de agosto de 2016

AS FLUTUAÇÕES DO LINGUAJAR



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            Um conjunto de regras gramaticais, aliado a um sistema abstracto e arbitrário de signos, utilizados ambos na concretização inteligível da dinâmica linguística, pode configurar uma qualquer língua, cuja afinidade e ausência de ambiguidades seja passível de possibilitar a comunicação entre os falantes de determinada comunidade geográfica.

            
          Sem perder de vista a comunidade geográfica a que se alude no parágrafo anterior, pensemos agora nas variações a que pode estar sujeita a língua aí falada, por força das diversidades e especificidades locais ou regionais, nomeadamente em termos fonéticos e lexicais; a este propósito, o Latim sugere-nos a palavra “dialectu” - dialecto, isto é: “linguagem própria de uma região”.

            
        “In illo tempore”, leia-se, desde as épocas tribais, a diferenciação capaz de provocar divergências na língua falada numa certa comunidade geográfica, ter-se-á devido à diminuição de contactos com aquela, e, portanto, à perda de relacionamentos linguísticos de proximidade, a par, também, das consequentes  interacções operadas com novas tribos mais distantes territorialmente. Esta dialectização, segundo o linguista André Martinet, poderá inicialmente fazer escurecer a compreensão dos falantes, até que possa surgir uma nova tribo que, pela força, venha a impor a sua hegemonia política ou cultural.


           Desta maneira, o dialecto do detentor do poder impôr-se-á, eliminando o até aí vigente ou, pura e simplesmente, mesclando-se com ele. Mas Martinet recorda que não é  a distância que provoca a diferenciação linguística, mas antes a diminuição e o esfriamento dos contactos. Ora, dizemos nós, em plena era de desenfreada globalização, por que razão tende a descaracterizar-se a identidade linguística, nomeadamente ao nível da ortografia da Língua Portuguesa? Paradoxalmente, devido à insensatez dos vários acordos ortográficos que, por exemplo, quer a França, quer a Inglaterra têm rejeitado conceber há já mais de três séculos.

            
       Mas apontemos agora exemplos de dialectos, ainda com a ajuda de Martinet, tendo por referência o castelhano: temos, então, o andaluz, o asturiano... e, tendo por referência não o castelhano, mas o território espanhol da Galiza, é possível escutarmos o galego que é dialecto do português. Já em território de Portugal (em certos nichos de Miranda do Douro – distrito de Bragança) é audível o mirandês – dialecto que o Castelhano influencia.

            
           Refira-se também o crioulo, tendo ainda em atenção o português, enquanto língua de cultura parcialmente interiorizada pelos escravos africanos forçados a viajar pela coroa de Portugal, para povoar e trabalhar nos arquipélagos até então desconhecidos e inabitados de Cabo Verde e de São Tomé e Príncipe, e em certas áreas territoriais da Guiné-Bissau. Este linguajar equivale a uma mescla descaracterizada e mutilada de algo que faz lembrar os dialectos e o patois francês, como opina Martinet.


            Na prática, e em conclusão, para que “a minha Pátria é (continue a ser) a Língua Portuguesa”, conforme afirmou Fernando Pessoa, vamos elevar os níveis de frequência e de intimidade de contactos com os falantes da língua de Camões, nos quatro cantos do mundo e com os emigrantes que nos visitam no Verão, em reforço da natural convergência e sem falsear a verdade etimológica, para que o processo de diferenciação linguística seja gradualmente atenuado. Excitante perspectiva, esta!


quinta-feira, 11 de agosto de 2016

A EDUCAÇÃO COMEÇA NO BERÇO

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        Uma das notícias emitidas na manhã de 10 de Agosto de 2016 referia uma constatação extraordinária mas, quanto a nós, nada surpreendente: “existe um número crescente de unidades hoteleiras, em Portugal, que rejeitam admitir crianças nas suas instalações”. Se conseguirmos penetrar na real e total dimensão de toda esta problemática, sem discutir a ilegalidade de tal interdição, rapidamente perceberemos as reticências ou até mesmo a intransigência que move os proprietários dos hotéis, cujos investimentos possam eventualmente ser postos em causa pelos azougados pivetes em roda livre, quando não em deplorável modo anárquico.

            Será que é disto que se trata, afinal!?...

            Ainda há dias, um conhecido psicólogo da nossa praça mediática (televisiva) aludia à importância do “não”, do saber e ser capaz de dizer “não” às criancinhas, aliás, tão necessitadas de normas, balizas e padrões comportamentais, como de pão para a boca. E é de pequenino, no seio da família, que se torce o pepino, caso contrário, o natural estado selvagem em que se nasce não será moldado nunca. É importante que todas as crianças e cada uma vão adquirindo, gradualmente, equlibradas capacidades de socialização, na família, na escola e na sociedade, través do respeito por si próprias e pelos outros, bem entendido, se os pais fores conscientes e responsáveis.

            A constelação familiar constitui a teia dinâmica fulcral ao desenvolvimento psíquico da criança, de acordo com toda a diversificada caracterologia daquela, onde têm maior relevo as condutas dos progenitores, dos irmãos e de eventuais educadores. Curiosamente, sobre esta matéria, Adler não deu importância à hereditariedade de factores psicológicos, apontando antes as influências do meio ambiente, isto é, a família em primeiro lugar, encontrando-se a mãe à frente dos restantes elementos. Na obra “O Sentido da Vida”, a dado passo, este autor escreve: “É, provavelmente, ao sentimento de contacto materno que devemos agradecer a maior parte do sentimento humano, de solidariedade e também a existência essencial da cultura”.

            Um outro grande cientista – António Damásio, ainda vivo e actuante, ensina-nos que “o cérebro retém uma memória daquilo que aconteceu durante uma interacção, e a interacção inclui de forma relevante o nosso próprio passado, e muitas vezes o passado da nossa espécie biológica e da nossa cultura” (Damásio, 2010: p. 171).


E porque da educação de crianças se trata, concluiremos com uma nova achega deste mesmo neurologista, quando aponta a morosa extensão temporal da infância e da adolescência humanas e a prolongada e lenta necessidade de educação dos processos não-conscientes do nosso cérebro, visando criar aí, nesse mesmo espaço, algo que possa vir a funcionar, de forma “controlada e fiável”, em função de “intenções e objectivos conscientes” (Damásio, 2010: p. 332). E acrescenta, reiterando o ponto de vista da neurofilósofa Patricia Churchland: “Podemos descrever esta educação lenta como um processo de transferência de parte do controlo consciente para um “server” não-consciente, e não a cedência do controlo consciente às forças inconscientes que podem provocar o caos no comportamento humano” (Damásio, 2010: p. 332).

domingo, 7 de agosto de 2016

RELENDO EÇA DE QUEIRÓS


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       Reservámos a segunda quinzena do passado mês de Agosto, a par de um conjunto de actividades de cariz recreativo-desportivo, para reler, entre outros autores, o nosso genial Eça de Queirós, nomeadamente o volume III – Obras Completas, de uma das várias edições colocadas à disposição dos amantes da boa literatura. Alves & C.ª, O Conde D'Abranhos, O Mandarim e, por último, O Crime do Padre Amaro, são os títulos reunidos neste terceiro volume.

            Ler ou reler Eça é sempre refrescante, divertido, elucidativo, pedagógico, logo, formativo, pelo que nos deixa a pensar, a reflectir sobre a realidade dos nossos dias, no que diz respeito à complexa teia das interacções familiares, sociais, políticas e religiosas, entre outros aspectos, naturalmente presentes nos enredos que este autor tão bem soube tecer. É que nada mudou, meus caros amigos, entre tudo quanto se passava nos idos das décadas de 1800 e aquilo que se tem vindo a verificar nos parcos dezasseis anos deste novo século XXI...

            Ou melhor, actualmente, o progresso e a sua faca de dois gumes – leia-se, as novas tecnologias de informação e comunicação, principalmente – vão conseguindo potenciar, efectivar e agilizar, para o bem, entre outros aspectos da questão: o conhecimento do mundo, a situação das economias, as descobertas da ciência, a interacção profícua dos homens de Boa-vontade... E, para o mal: , o compadrio, o tráfico de influências, a corrupção, a concretização de estratégias de guerra... É curioso como a seguir à palavra guerra associámos, automaticamente, a palavra audiências! É que estas, no século XIX, não existiam, embora os trabalhadores fossem, do mesmo modo, formatados a partir do berço, como refere Eça, “pela força da religião e pelo chicote da polícia”.
           
            Mas, porque de Eça de Queirós se trata, particularizemos um pouco a temática contida na diegese de duas das suas obras, quando não a ideologia funesta, repressiva, mórbida e cruel, reflectida pelos valores da sociedade de então e, diga-nos o leitor em que é que mudou o enquadramento e a substância sócio-culturais dos dias que correm! Tal como no Primo Basílio, no âmbito do qual a protagonista Luísa acaba por pagar com a própria vida um deslize de amor, durante a ausência prolongada e insuportável do marido, também em O Crime do Padre Amaro, a bela Ameliazinha, de 23 anos, solteira, seduzida pelo Padre Amaro, morre, agonizante, depois de um parto atribulado, quando constata, no dia seguinte, que o filho lhe foi subtraído, ainda que desconheça que o nacituro foi assassinado pela ama (“tecedeira de anjos”) no mesmo dia em que recebeu o pagamento de um ano pelos serviços de amamentação.

       Pois é! A violência doméstica continua em alta e, tanto mulheres como crianças, continuam a morrer às mãos de machos-primitivos-actuais... Ah! Mas tínhamos pedido que fosse o leitor a nos dizer em que é que mudou o enquadramento e a substância sócio-culturais dos dias que correm!

ESTADO NOVO E RESISTÊNCIA - Capítulo VIII - SALAZAR – O CANTO DO CISNE


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        Salazar deveria ter percebido, no início dos anos 50, que os ventos da História começavam então a soprar de outros quadrantes. A Resistência, pelo seu lado, continuava activa, através da acção do “Avante”; este jornal continuava a ser impresso clandestinamente, em tipografias muito bem disfarçadas no interior de casas de aspecto vulgaríssimo. É neste contexto que o governo tende a exercer uma pressão cada vez mais forte sobre as massas populares e sobre a resistência organizada, colocando a PIDE em campo; esta prende, tortura, maltrata e mata o responsável pela tipografia clandestina do jornal do Partido Comunista Português, “Avante”, em 1950, sem que o operário vidreiro, José Moreira, contudo, tivesse falado.

            Logo após a morte de Óscar Fragoso Carmona, em 1951, realizam-se novas eleições, aproveitando a Oposição o facto para apresentar o candidato Quintão Meireles e o professor Rui Luís Gomes que, acusado este de ser comunista, vê a sua candidatura rejeitada pelo Supremo Tribunal de Justiça. É assim que a Oposição se retira, deixando o caminho livre à eleição de Craveiro Lopes, proposto pela União Nacional.

            Entretanto as greves continuam a ser reprimidas a tiro, quer no rectângulo da Metrópole, quer nos territórios africanos onde os homens são tratados como animais de trabalho. Esta incapacidade de ver as coisas como elas na realidade eram, provocava fortíssimas críticas por parte de certos países estrangeiros. Em 1954 foi, finalmente, decretado o “Estatuto do Indígena”.

            Na extensa e tórrida planície Alentejana, sempre que os camponeses reivindicam salários com os quais possam fazer face à carestia da vida, são atacados pelas forças da Guarda Nacional Republicana que, na pessoa de Carrajola, fere de morte a trabalhadora agrícola Catarina Eufémia.

            Em 1955 Portugal integra o cômputo das Nações Unidas. Em 1956 o governo estende as “medidas de segurança” às colónias africanas, tentando dar resposta ao aparecimento dos movimentos nacionalistas, ironicamente liderados por recém-diplomados em Universidades do Portugal Europeu.

            Em 1958 volta a haver eleições: Américo Tomás concorre pelo estafado partido único do regime; pela Oposição apresentam-se Humberto Delgado e Arlindo Vicente, vindo este a desistir em favor daquele. Delgado, massivamente apoiado pela população, afirma com coragem e determinação: “caso vença, demitirei Salazar!”

            Depois de tudo isto, e, feitas as “contas”, Delgado consegue apenas 0,25 por cento dos votos. Havia fortes suspeitas de viciação. Durante a campanha, a PIDE foi desenvolvendo a sua acção, prendendo manifestantes e perseguindo políticos. Entre os presos contam-se António Sérgio, Jaime Cortesão, Mário Azevedo Gomes e Vieira de Almeida. Delgado é demitido e os seus partidários são presos.

            Ainda no ano de 1959 as eleições para a presidência passam a ser feitas por um colégio eleitoral constituído principalmente pela Assembleia Nacional e pela Câmara Corporativa. Em 1960, Álvaro Cunhal e outros opositores do regime conseguem evadir-se do forte de Peniche. Também no ano anterior Henrique Galvão tinha tido êxito na sua fuga de um hospital de Lisboa.

            Salazar não transige no que diz respeito às colónias e o caso de Goa vai ao Tribunal de Haia. Em África, os movimentos ditos de libertação tentam, em vão, negociar, encetando a rebelião armada através de processos de intimidação bárbara contra fazendeiros e trabalhadores negros, mulheres, crianças e animais, às ordens de Holden Roberto, nos primeiros meses de 1961, em Angola. Esta estratégia foi, na altura, sistematicamente reprovada pelo Dr. Agostinho Neto. Na Guiné, o conflito estala em 1963 e em 1964 Moçambique é palco também dos primeiros confrontos. Numa chamada de atenção ao mundo, Henrique Galvão assalta o paquete “Santa Maria”, ao qual chama “Santa Liberdade”.

            A guerra colonial acaba por trazer nova consistência e unidade nacionais ao regime e ao país respectivamente e, enquanto a guerrilha prossegue, os investidores nacionais e estrangeiros apostam nas matérias-primas das colónias, proporcionando um crescimento ímpar, em pouco tempo, nos territórios sob administração portuguesa. Na prática quem mais lucrou foi o capital e os interesses estrangeiros; Portugal, incompreensivelmente, pouco “comeu do bolo” e, quanto aos povos autóctones, salvo alguns casos isolados de pessoas bem posicionadas, nada puderam comungar ou usufruir. Era o crescimento sem desenvolvimento…

            Em 1961, as crises académicas são de carácter fundamentalmente político, embora a estrutura do ensino fosse também contestada. Salazar manda a polícia reprimir os estudantes, o que leva à demissão de Marcelo Caetano do cargo de reitor, afirmando violação da autonomia universitária. O 1.º de Maio é dia de luta e a polícia encontra-se vigilante

Em 1965 há eleições sendo reeleito Américo Tomás. A oposição vê os seus intentos sistematicamente frustrados, pois Salazar não desarma e, quando vem defender uma solução política e não militar para o conflito africano, não consegue convencer o presidente do Conselho de Ministros.

Em 1967 forma-se a LUAR; em 1970 a ARA; em 1971 as Brigadas Revolucionárias, tudo organizações que se colocam ao lado dos trabalhadores.

Depois da morte de António de Oliveira Salazar, em 1968, Tomás chama Caetano para chefe do Governo. Logo aqui surge no espírito de todos uma nova esperança de democratização que a prática desmente. Marcelo limita-se a mudar o nome às coisas: “Estado Social” em vez de “Estado Novo”, prosseguindo, no entanto, o incremento capitalista e o estado corporativo. Nas colónias continua a guerrilha sem contornos claramente definidos e, na Metrópole, Caetano vai organizar as primeiras eleições.

Em quase todos os círculos a oposição concorre através das organizações “CDE” e “CEUD”. A contagem dos votos é, uma vez mais, defraudada e a oposição contesta, sem êxito. Só há lugar para a União Nacional. A PIDE muda também de nome, passando a exibir a designação de DGS – Direcção Geral de Segurança, não mudando, contudo, a sua hedionda acção contra todos aqueles que tentam de alguma forma resistir.

Até 1974 Caetano continua a “liberalizar” à sua maneira, chamando à União Nacional, Acção Nacional Popular (1970). Em 1973 alguns deputados (Francisco Sá Carneiro, por exemplo) renunciam aos seus mandatos por discordarem da acção do regime que persiste no autoritarismo monolítico das suas principais estruturas. A censura chama-se agora “exame prévio”; as colónias, que depois de terem sido designadas de províncias, são agora rebaptizadas de Estados, sem que a guerra se resolva. Aumentam as contradições do regime, assim como a sua dependência económica em relação ao estrangeiro; aumenta também a inflação e a vida torna-se cada vez mais difícil para quem trabalha. Nesta medida, os trabalhadores reivindicam aumento de salário, direito à greve, liberdade sindical, entre outras coisas. A pressão exercida sobre o regime começa a tornar-se insuportável.

Em 1973 a Direita esclarecida tinha em mente preparar um golpe de estado em Portugal, através das diligências que, para o efeito, Kaulza de Arriaga se propunha desenvolver. Nada ocorre, no entanto. Em Luanda, na mesmo ano e, da mesma forma, preparava-se o MPLA para a implementação de acções de luta, prontamente aniquiladas pela atenta vigilância da Direcção Geral de Segurança.

Em 1973 é criado o Movimento das Forças Armadas. Na madrugada do dia 25 de Abril de 1974 o MFA derruba airosamente o regime político vigente e, depois de inúmeras peripécias, encetam-se os primeiros passos (com avanços e recuos) no sentido da construção da democracia em Portugal.


Nota: Por motivos alheios à nossa vontade, só hoje (07/08/2016) é possível concluir a série de publicações sobre a temática.